29 de abril de 2025
Por Sebastian Soares
Para Conjur – Publicado em 29.04.2025
Nos momentos em que surgem escândalos corporativos ou crises de confiança no mercado, é comum que os holofotes se voltem com intensidade sobre a auditoria independente e reguladores. A justificada indignação de investidores com as fraudes acaba levando a cobranças e, muitas vezes, a críticas precipitadas que se concentram em poucos agentes da cadeia de governança corporativa. Seguindo esse raciocínio – ou reação emocional –, é como se a complexa engrenagem de supervisão e controle se resumisse apenas a essas figuras.
Tal percepção, no entanto, não reflete a realidade do ecossistema de governança corporativa. A auditoria independente configura, claro, peça fundamental, mas ela atua dentro de um arcabouço mais amplo que possui responsabilidades compartilhadas – expressas exaustivamente em leis e normas. Incluem-se aí, os conselhos de administração, comitês de auditoria, conselhos fiscais, órgãos reguladores, investidores e outros agentes que possuem obrigações e responsabilidades com a integridade das companhias e transparência do mercado.
Analisando a relação de todos esses corresponsáveis pela governança corporativa com os auditores independentes, percebe-se uma diferença entre o que dizem as normas e o que dizem aqueles que reagem desproporcionalmente após fraudes. Segundo as normas, o auditor independente sempre inicia o trabalho de avaliação de contas tendo em mente a presunção de boa-fé quanto ao que é apresentado pela empresa, resguardando obviamente, o ceticismo profissional. Mas, na opinião passional de alguns entes de mercado, a auditoria independente se traveste de investigador e, quem sabe, até de vingador de virtuais ilícitos cometidos por executivos – e que passaram desapercebidos por inúmeros outros executivos aos quais as contas passaram antes de chegar às mãos do auditor independente.
Mas vale sempre lembrar e ressaltar os limites de sua atuação. A auditoria independente não tem acesso irrestrito à totalidade das informações internas de uma empresa, nem pode se manifestar publicamente sobre o conteúdo de suas auditorias sem autorização legal ou contratual. O sigilo e a confidencialidade são elementos essenciais para a preservação da função institucional da auditoria independente, e seu rompimento só se justifica em contextos excepcionais e devidamente regulamentados.
O objetivo central do auditor independente é examinar os documentos e dados fornecidos pela companhia auditada, com o propósito de verificar se as demonstrações contábeis foram elaboradas de acordo com as normas aplicáveis e refletem, de forma razoável (e não absoluta), a realidade financeira e patrimonial da empresa. As firmas de auditoria colecionam diversos casos em que perceberam erros e distorções com enorme potencial de danos, e procederam no sentido de evitar o pior. Acontece que essa infinidade de casos nunca vêm à tona, obviamente, pelo sigilo do trabalho e demais implicações éticas.
E a complexidade do trabalho da auditoria independente só aumenta ano a ano. Ante os avanços tecnológicos e as novas possibilidades de fraudes – para citar apenas alguns fatores – as normas internacionais e brasileiras tornam-se mais detalhadas e abrangentes. Isso requer constante aperfeiçoamento do auditor independente, obrigado a cumprir dezenas de horas de capacitação para se manter certificado. Este cenário também exige das firmas de auditoria investimentos em capacitação, incorporação de novas tecnologias e modernização dos seus processos.
Portanto, a responsabilização desproporcional das firmas de auditoria não só é descabida como traz riscos enormes à economia. Trata-se de um aspecto que precisa ser enfrentado com maturidade. Diversos estudos internacionais já alertaram que, quando há um movimento de penalização indevida dos auditores independentes, o resultado pode ser o oposto do desejado: a retração do mercado, a saída de players e a concentração indesejada em poucos grupos capazes de suportar riscos jurídicos elevados. Mercados maduros, como o Reino Unido, os Estados Unidos e diversos países da União Europeia, têm caminhado no sentido de estabelecer limites à responsabilidade civil das firmas de auditoria — sem abrir mão do rigor técnico e do controle de qualidade.
Esforço conjunto
Na Alemanha, por exemplo, após uma atuação inicial dura sobre os auditores independentes, o país revisitou suas medidas com o objetivo de garantir a sustentabilidade da profissão e a concorrência saudável no setor.
No Brasil, esse debate também já foi colocado em pauta. Recentemente, a B3 publicou um documento de boas práticas sobre comitês de auditoria, reconhecendo o papel relevante e a corresponsabilidade dos seus membros na supervisão dos processos de controle e integridade das companhias. Trata-se de uma sinalização importante, que reforça a noção de corresponsabilidade no sistema de governança corporativa.
Em outras palavras, a prevenção a fraudes e a promoção de um ambiente de negócios ético e confiável não são atribuições isoladas. São fruto de uma força conjunta, quase uma força-tarefa, que exige a atuação articulada das instituições, das companhias e dos agentes que integram esse ecossistema. Um exemplo do esforço da profissão é a norma ISA 240, que foi revisada para fornecer orientações sobre como o auditor deve lidar com o risco de fraude durante uma auditoria de demonstrações financeiras. O auditor independente é parte da solução, mas sozinho não resolve tudo.
Sim, o trabalho da auditoria independente é fundamental para a saúde do ambiente negocial e para a proteção da sociedade. Mas ele não substitui o papel da administração, dos comitês de auditoria, dos conselhos e dos reguladores. O setor sempre defendeu o fortalecimento das práticas de governança e ética nas companhias. É por meio da conscientização sobre as funções e limites de cada agente que será possível construir um ambiente de negócios mais seguro, transparente e sustentável.
Mais do que nunca, é hora de consolidarmos uma compreensão madura do papel de cada componente desse ecossistema. Só assim será possível fortalecer a confiança no mercado e promover um desenvolvimento empresarial sólido, com responsabilidade compartilhada e foco no interesse público.
Sebastian Soares é presidente do Instituto de Auditoria Independente do Brasil (Ibracon).
Para acessar este conteúdo é preciso estar logado como associado.